Veganismo não é dieta — nem ato político

As imagens mais comuns sobre Veganismo são de comida a base de plantas, e mesmo as que mostram animais são sobre o seu sofrimento em matadouros ou na grande indústria alimentícia, reforçando a ideia de que Veganismo é sobre vegetarianismo e/ou uma causa pelo bem-estar animal. Ao meu ver, uma imagem de um leilão representa muito melhor a injustiça que o Veganismo realmente se refere: a transformação dos animais em mercadorias, tratados como propriedades, independentemente de como são cuidados.

Muitos dizem “Veganismo não é dieta” mas continuam tratando-o como se fosse. Além da simplificação mais comum, há muitos que ainda o chamam de “ato político”, embora raramente consigam explicar que ato é este (mas costuma ser um tipo de vegetarianismo mesmo, que procura boicotar grandes empresas, pelo benefício ambiental e humano.) E vegetarianismo é uma prática antiga, sempre promovida por diferentes povos e culturas, e por diversos motivos: saúde, espiritualidade, tradição; e quando relacionado aos animais, uma prática apenas contra o seu sofrimento ou morte, não contra sua exploração. 

Na Roma Antiga, médicos e filósofos já promoviam dietas sem carne como forma de melhor digestão ou “purificação.” No Jainismo na Índia, séculos antes de Cristo, a renúncia da ingestão de animais fazia parte da disciplina espiritual; entre os pitagóricos, também na Grécia antiga, a abstenção era parte de uma cultura filosófica de harmonia e pureza. O imperador Ashoka, na antiga Índia, proibiu sacrifícios de animais em certos festivais e ordenou cuidado para com animais, mostrando que leis contra práticas cruéis ou uso excessivo existiam há milênios atrás. O que varia é a época, a geografia, o povo, mas não a ideia e prática vegetarianas pelo benefício humano, ambiental ou meramente contra maus tratos de animais.

O Veganismo, por outro lado, foi estabelecido como um princípio ético inédito há menos de 80 anos apenas, gerando o maior marco da causa animal: o dever de rejeitar a sua exploração, mesmo que não tenha a ver com alimentação, maus tratos ou morte. O termo foi estabelecido como uma postura moral, de simples e precioso respeito pelos outros animais como indivíduos, embora seja difundido globalmente, e infelizmente distorcido quase sempre, para uma prática vegetariana estrita pelo motivo que for.

Em 1951, Leslie J. Cross, então vice-presidente da Vegan Society, redigiu o texto “Veganismo definido” impresso numa publicação internacional (edição de primavera de 1951 da World Forum), onde em acordo com os fundadores registrou que o Veganismo é o princípio ético pelo qual a humanidade deve viver sem explorar os animais. Essa publicação foi a definição ética formal (e autoral, de acordo com os fundadores da causa) de Veganismo, e serve de base até hoje para entender de maneira simples, concisa e direta, o comportamento do vegano que vive naturalmente, sem fazer esforço para rejeitar qualquer uso de animais. E mesmo naquela época, Cross e os fundadores reconheceram que muitos estavam atribuindo ao termo sentidos pessoais ou intuitivos, e por isso depois de 7 anos de pesquisas e trocas, estabeleceram uma definição clara e concisa contra qualquer tipo de exploração animal, adereçando o mais fundamental e urgente que precisamos ter em relação aos outros animais: a mudança de mentalidade; deixar de vê-los como mercadorias ou escravos, e passar a realmente vê-los (e consequentemente tratá-los) como indivíduos. 

Com o tempo, novas direções da Vegan Society distorceram a definição de Veganismo em sucessivas revisões a fim de torná-lo mais flexível e pessoal. E ao distorcer a única palavra criada para adereçar o nosso dever de respeitá-los para práticas “dentro do possível e praticável”, tanto a importância quanto a urgência dos animais foram diluídas. Reduzir o Veganismo a um conjunto de práticas ou transformá-lo em perfil de consumo vegetariano pelo que quer que seja é apagar o maior marco da causa animal, o abolicionista, e portanto equivale a apagar os próprios animais e a sua História. O dever moral deixou de existir, pra dar lugar a uma mera escolha pessoal, estilo de consumo, ou identidade virtuosa.

É fácil notar que a maior parte das pessoas que diz entender o Veganismo o reduz a um vegetarianismo mais restrito. E se entendemos que Veganismo é um princípio ético muito mais amplo e importante que quase nunca é promovido corretamente, e observando mesmo na nossa vida cotidiana (quantos se intitulam vegetarianos estritos sem jamais considerar animais usados fora da alimentação, ou mesmo retomam naturalmente o consumo de carne ou produtos animais), é plausível estimar que nem 1% da população é realmente vegana, isto é, consistente e conscientemente contra qualquer tipo de exploração animal. E um cenário destes requer educação de base urgente: como tratamos animais pode ser importante, mas não mais que a maneira que os vemos. Se os vemos como mercadoria, não há como frear a crueldade contra eles. E se alguém não os vê como mercadoria, jamais poderia fazer qualquer mal a eles e nem mesmo “explorá-los com cuidado.” O Veganismo, portanto, não é sobre crueldade e sofrimento, mas é a única via pela qual podemos preveni-los ao máximo: pela educação de que animais não são coisas, mercadorias, ou recursos, ao nosso serviço, mesmo quando bem tratados.

Antes de definir o nosso comportamento em qualquer situação, partimos da nossa mentalidade, e respeito não é diferente. Não respeitamos o outro à medida que nos comportamos de alguma maneira, mas quando olhamos pra ele com respeito. A partir daí, um comportamento saudável flui naturalmente. Mas sem esse olhar, o comportamento é mera obediência a norma social, ou performance. E isso não é diferente na nossa relação com os outros animais: se não percebemos e consertamos a maneira que fomos ensinados a enxergá-los, no máximo teremos aqueles que apenas agem e discursam como se os respeitassem (e geralmente acabam demonstrando que ainda não respeitam.) E se não houver um número mínimo (e bem acima de 1% da população) de veganos consistentes, não teremos a menor chance de qualquer efeito em larga escala, político ou de mercado.

Tratar o Veganismo como uma simples ação, mesmo que politizada, não só é um desrespeito à consciência histórica e fundação da causa, como uma grande distorção lógica e ética; afinal, não fazemos coisa alguma por simplesmente respeitar alguém. Veganismo é respeito, e isso não é ação; é postura moral, mentalidade, olhar. Celebrar o conforto de quem acredita já fazer o bastante pelos animais, mesmo sem ser vegano, ou seja, sem ainda ter revisto a forma como os enxerga e os trata como produtos, contribui mais para manter o problema do que para transformá-lo. Isso, contudo, não é um apelo à violência nem à rigidez. Falar com firmeza não é o mesmo que ser agressivo; sem seriedade, não há como tratar com responsabilidade a justiça devida a qualquer grupo de vítimas.


Victoria Valente é artista, estudiosa e ativista vegana. Acredita que o maior obstáculo para o avanço do Veganismo é a desinformação: seja pela sua banalização, seja pela complexidade ideológica que o distancia de sua essência. Em seu trabalho, busca resgatar a história, o sentido ético e a consciência moral que originaram o maior marco da causa animal.

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